Carlos Binder é um daqueles apaixonados que faz qualquer coisa para ver a banda passar. O maestro responsável por um dos poucos projetos musicais comunitários do Grande ABC praticamente nasceu na Banda Lyra de Mauá. Não que sua idade iguale-se ao tempo de atividade da banda, fundada em 1934. A referência é apenas força de expressão para situar a trajetória do homem de 43 anos que mantém vivo um sonho inevitavelmente ligado ao saudosismo. Músico por paixão e herança, Carlos Binder incorpora voluntariamente o papel de comandante de 300 jovens que, como ele, ainda acreditam ser possível melhorar o mundo por meio da magia da música.
Filho de austríaco tocador de tuba em Viena -- a cidade imortalizada pelas valsas de Johann Strauss --, Carlos teve o privilégio de herdar do pai o dom que transformou em persistência. Afinal, em pleno terceiro milênio e sob a marcação cerrada da pasteurização fonográfica e da erotização dos conjuntos musicais, não é muito fácil perpetuar a musicalidade nata dos imigrantes europeus -- entre eles o próprio pai -- que fundaram a Banda Lyra de Mauá no início da década de 30. Como está sempre disposto a seguir em frente, Carlos Binder já pode exibir uma história que mescla acordes de heroísmo e de responsabilidade social.
O entrelaçamento entre a vida do maestro e a trajetória da Banda Lyra é praticamente genético, dos tempos em que o então garoto ainda ocupava o papel de mascote da corporação. Tinha oito anos quando começou a estudar trompete, 14 quando se pôs a viajar com a banda em apresentações por outras cidades e pouco mais de 25 quando se tornou o regente. Eram tempos diferentes, obviamente. Tempos em que participar das bandas e fanfarras de escola e disputar festivais conferiam status que foi gradativamente substituído por valores que renegaram a segundo plano tanto as raízes quanto as tradições culturais e até o gosto pela boa música.
"Hoje a Banda Lyra é alternativa efetiva de inclusão social" -- reconhece Carlos Binder. A revelação poderia parecer controversa há 40 anos, quando filhos de imigrantes e de famílias tradicionais de Mauá eram os principais componentes. Mas é perfeitamente cabível na realidade desses dias de desemprego acentuado e violência crescente porque reflete com precisão a transformação da sociedade local. Cerca de 80% dos alunos vêm de bairros da periferia, pertencem às classes D e E e chegam à corporação com o claro intuito de encontrar brecha profissional por meio do aprendizado musical.
É esse contexto de exclusão, devidamente aditivado pela paixão musical, que delineia para Carlos Binder a importância do trabalho voluntário que conduz auxiliado por mais uma dezena de abnegados. Os planos são tão estridentes quanto a falta de dinheiro, principalmente porque o comandante não está satisfeito com o nível de participação. O maestro gostaria que os atuais 300 participantes se multiplicassem em mais 300 a cada seis meses e as aulas gratuitas chegassem aos bairros mais distantes da cidade. Todas as atividades são concentradas na sede da Banda Lyra, no Centro, e a distância seria um dos fatores inibidores da participação. "É difícil motivar jovens que vivem em famílias desestruturadas e muitas vezes passam fome. Alguns caminham até cinco quilômetros para vir ao ensaio porque não podem arcar com o custo do transporte" -- lamenta.
Carlos Binder não demorou a aprender que as mãos do maestro da Banda Lyra de Mauá foram feitas para segurar algo mais que a batuta e os olhos para enxergar além das partituras. Não basta reger os músicos e ensinar-lhes a execução perfeita das mais de 800 peças entre clássico, pop, rock, infantil e outros gêneros musicais que compõem o repertório da corporação. É preciso também cuidar dos detalhes operacionais, das vestes, do lanche, do transporte e até daquele aluno que, por deficiência no sistema educacional, tem dificuldade para ler e compreender as apostilas com os ensinamentos teóricos.
O maestro está sempre às voltas com contas que nunca são pequenas. Os uniformes que já mostram o visível desgaste de seis anos de uso estão sendo renovados: lá se vai algo em torno de R$ 20 mil. Depois vêm os sapatos, mais R$ 5 mil. Os instrumentos, com média de 12 anos, também já precisam ser trocados. A lista parece não ter fim e o dinheiro, lógico, nunca é suficiente.
Muito título, pouco apoio -- As notas de desafinamento financeiro que insistem em acompanhar o maestro e sua banda são regidas em parte por descompassos políticos que por vezes tentam justificar o injustificável. Nos últimos seis anos não houve apoio oficial do Poder Público. Para não dispersar o grupo foi necessário buscar parcerias na iniciativa privada. Binder, que se tornou expert também em reger desafios e chegou a ensaiar até em banheiro de teatro, conta com apoio da Coop, da Lara Serviços e da Qualicorp para manter o grupo. "Não é justo transferir essa responsabilidade só para o setor privado. A banda, com certeza, mantém 300 jovens afastados da marginalidade e isso não tem preço para a cidade" -- argumenta o maestro.
O desabafo é justificável porque a Banda Lyra já ensinou música para mais de cinco mil alunos. Sob a batuta de Binder, tem colecionado galeria de prêmios capazes de propagar pelo País imagem positiva de Mauá, cidade empenhada em recuperar a auto-estima. São mais de 30 títulos, entre os quais o de hexacampeã estadual, hexacampeã nacional e bicampeã no Campeonato da Federação Paulista de Bandas e Fanfarras. Isso sem contar mais uma dúzia de premiações conquistadas pelo corpo coreográfico personificado pelas três irmãs que são balizas (dançarinas da comissão de frente) da banda.
Os olhos do maestro brilham ao lembrar de cada apresentação vitoriosa. É como se esses momentos compusessem os acordes que coroam o gran finale de uma história que sempre continua no dia seguinte. Entre as recordações de Carlos Binder, a participação no Festival Internacional de Bandas e Fanfarras em Mellipilla, no Chile, em 1995, parece ser a de maior relevância. Nem poderia ser diferente. A apresentação impressionou tanto que o maestro e seu grupo ganharam reportagem de oito minutos no telejornal de maior audiência daquele país. Também estão em alta conta duas participações no Festival de Inverno de Campos de Jordão, na famosa Praça do Capivari.
Se a vida de Carlos Binder, a trajetória da Banda Lyra e a história de Mauá fossem componentes musicais de uma obra de mixagem, certamente seria difícil separar as três em sons diferenciados. Binder viveu a saudável rivalidade que havia nos anos 80 entre o Viscondão e o Humberto de Campos, coincidentemente duas escolas que em momentos distintos apoiaram a Banda Lyra. Tornou-se regente quando o então maestro Roberto Silva suicidou-se após cometer um dos crimes passionais mais famosos da cidade, ao matar publicamente a mulher e o ex-prefeito Dorival Rezende. E ainda é testemunha ocular das transformações que empobreceram a cidade e modificaram totalmente o perfil socioeconômico dos participantes.
Apesar de tanto envolvimento, o maestro considera-se meio em dívida com Mauá. "Gostaria de promover apresentações periódicas em praças, bairros e cada local público onde pudesse despertar o interesse de talentos natos" -- afirma. Depois que os tradicionais desfiles da Independência e do aniversário da cidade foram abolidos, a Banda Lyra só tem conseguido fazer uma apresentação anual em Mauá. É o concerto de Natal na Igreja Matriz. "Já solicitamos espaço no novo teatro e estamos no aguardo da data" -- revela para a torcida daqueles que quase nunca têm acesso a espetáculos musicais ao vivo.
Ironicamente, Carlos Binder não conseguiu o que mais almeja para seus músicos e aprendizes. Ele já revelou talentos para a Orquestra Municipal de São Paulo, para a Banda Sinfônica Jovem de São Paulo e até para a Jazz Sinfônica, mas não conseguiu viver da música. A morte precoce do pai antecipou sua estréia na selva da sobrevivência e o transformou num bacharel de Direito que hoje dirige uma corretora de seguros na Capital. À pergunta sobre qual sua maior paixão, responde como se emitisse um som em eco: música, música e música. Obviamente a esposa Maria Aparecida e a filha Natália de 11 anos -- que também estuda música -- ocupam lugar diferenciado nessa lista.
Total de 1097 matérias | Página 1
21/01/2025 PAULINHO, PAULINHO, ESQUEÇA ESSE LIVRO!