Sociedade

O mundo é
mesmo uma bola

MALU MARCOCCIA - 05/08/2002

Quer provocar o esportista são-bernardense Cyro Cassettari? Pergunte por que a ADC São Caetano é o mais novo pop star do futebol brasileiro. "Eles têm lá o prefeito Luis Tortorello" -- responde com sua sempre vigorosa veia provocativa de jornalista nas horas extras de veterano comerciante da cidade. Exagero à parte, esse apaixonado por futebol e vice-presidente do Palestra quer mesmo é pôr uma brasa nas mãos dos políticos. Não se conforma que São Bernardo viva na retranca do futebol profissional enquanto Santo André conseguiu sair do anonimato ao voltar à série A-1 e São Caetano passa por seu nirvana esportivo com a conquista da Libertadores da América. Para ele, há políticos por trás. Um dos meninos de ouro do técnico Nandinho do Palestra dos anos 50, Cyro Cassettari morde na jugular: "Que adianta investir no esporte social, com dezenas de escolinhas e ginásios nas vilas, se o Poder Público de São Bernardo não dá prosseguimento à carreira esportiva dessas crianças quando completam 18 anos?".

Cassettari se refere às escolinhas de futebol e aos times amadores incentivados pela Prefeitura, mas que não conseguem estruturar uma equipe profissional que coloque a cidade no mesmo patamar de prestígio, poder e intriga (por que não?) dos chamados times grandes. Por isso, vários jovens emigram para equipes de fora e até tiram a sorte grande -- como é o caso dos tetra Ronaldão e Mauro Silva e do penta Denílson, que saíram das escolinhas de São Bernardo -- ou então se transformam em mão-de-obra excedente para a criminalidade. "A cidade forma campeões para os outros levarem a fama. É por isso que vou lançar a candidatura de Tortorello à Prefeitura de São Bernardo e cedo meu endereço para seu domicílio eleitoral" -- dispara o sempre polêmico mas afável Cyro Cassettari, com um misto de alegria e inveja da trajetória do vizinho São Caetano.

Cassettari é assim mesmo, fanático por futebol e por São Bernardo. Conhece o DNA da bola desde criancinha, quando jogava no chão de terra que mais tarde seria o campo do Palestra e onde hoje fica a Praça Lauro Gomes, no Centro. Aos 65 anos completados em 16 de julho último, Dia do Comerciante, o fundador da tradicional Esportes Cassettari ganhou uma camisa da Seleção autografada por todos os pentacampeões de 2002 que imediatamente pôs na vitrine da loja e que vai virar patrimônio da família ao lado de outra raridade, uma camisa do então glorioso Santos autografada pelo Moisés em pessoa, o rei Pelé. O amor pela redonda levou esse palmeirense descendente de italianos de Lucca a distribuir durante 10 anos bolas oficiais para todos os times amadores da cidade. Foi a famosa Festa da Bola, que ele calcula ter entregue mais de mil unidades.

Se não o primeiro, Cyro Cassettari é seguramente o segundo torcedor mais devoto da pátria de chuteiras. Apostou tanto na Seleção de 2002 que adquiriu a cota máxima das camisas oficiais da Nike. Desde fevereiro, quando colocou as verde-amarelas em exposição, diz que vendeu mais de 500 peças. "Quem tem Ronaldinho, Rivaldo, Cafu e Roberto Carlos não pode ser desprezado. Com a Seleção é assim mesmo: viaja desacreditada pelas mesas-redondas da mídia, para as quais quanto pior, melhor" -- exagera de novo, desautorizando quem diz que, ao contrário do futebol-paixão de antigamente, os craques de hoje são movidos por cifrão. 

"Já passou a época dos salários absurdos. Veja como o Ronaldinho abriu mão de parte dos rendimentos para continuar defendendo a Inter" -- cita, em tom de mestre: "A profissionalização do futebol foi muito boa. Vieram os grandes técnicos e a sofisticação da medicina esportiva, além de os atletas terem carteira profissional" -- fala pausadamente o ex-goleiro infantil do Palestra, que teve o irmão Zeca Cassettari também como goleiro do time adulto numa época em que amor à camisa não era força de expressão. "Distribuíamos as camisas de improviso e quem gostava tinha de correr atrás da bola. Fazíamos excursões passando o chapéu para arrecadar dinheiro. Tivemos até morte para defender nosso campo de jogo" -- lembra Cyro Cassettari sobre a época em que políticos de São Bernardo, inclusive a lendária Tereza Delta, se dividiram em pró e contra a construção da Praça Lauro Gomes, o que implicou no despejo do Palestra. Fundado em 1935, o clube conseguiu só em 1959 um terreno da Prefeitura no Bairro Ferrazópolis, onde ergueu um hoje respeitável ginásio poliesportivo.

"O clube tinha sede aqui, ali. Brigas políticas levaram à destruição da sede e do campo e foi a família Cassettari que guardou documentos e troféus de conquistas do time" -- escreve o jornalista-historiador Ademir Medici no livro Palestra de São Bernardo Meio Século 1935-1985. Trata-se de um rico relato da trajetória de uma cidade que, além da fase de ouro do Palestra na década de 70 nas mãos de Belmiro, teve o Meninos, o Baeta, o Sporting, o Madureira, o eterno rival Esporte e o desafeto Aliança Clube. 

O Palestra é hoje o único representante de São Bernardo disputando a obscura série B-1 do Campeonato Paulista. "E graças à raça de seus dirigentes, que custeiam o emprego de 30 pessoas" -- enfatiza Cyro Cassettari, que não se conforma: cita que estão às moscas espaços de ouro que poderiam abrigar a formação de grandes equipes, como o imponente Poliesportivo da Avenida Kennedy e o antigo Ginásio do Baetão, interditado há anos. "Sem falar do deteriorado Estádio Humberto de Alencar Castelo Branco, que precisou até demolir as torres de holofotes" -- completa, com o conhecimento de quem todos os domingos, invariavelmente, está nos campos de várzea prestigiando os times juvenis e amadores da cidade. Essa assiduidade Cyro Cassettari não tem sequer com o time do coração Palmeiras, que prefere ver pela TV. É por isso que o comerciante até elogia o que chama de filosofia esportista social dos últimos governos socialistas de São Bernardo. Mas os alicerces das escolinhas de futebol deveriam ser repensados para que o esporte profissional não seja abandonado, arremata o palestrino presidente de honra do clube e Liga Sambernardense, pai de três filhos e avô de Gustavo, de seis anos. A arma secreta que faz do São Caetano um competidor formidável reúne, segundo Cassettari, infra-estrutura com estádios distritais, jogadores com salários equivalentes, trabalho organizado que seduza patrocinadores e -- insiste -- padrinhos políticos. "Basta o prefeito telefonar que consegue apoio financeiro" -- acredita. 


Empresários desunidos -- Por esse ângulo, a discussão seria mesmo interminável quando se parte para o pouco racional -- mas delicioso -- campo da paixão futebolística. Principalmente se os interlocutores forem descendentes de oriundi com sobrenomes como Setti, Lentini, Rocco, Angeli, Savordelli, Sabatini, Scarpelli, todos mobilizados há quase 70 anos para dar um time oficial à camisa alvi-verde. Essa irmandade, porém, o hoje vice-presidente do Palestra não consegue reeditar na pele de empresário. A Esportes Cassettari acaba de completar 43 anos e viu apenas quatro empreendedores se unirem para lutar durante 14 anos pela Zona Azul da caótica Rua Marechal Deodoro, implantada somente em fins de 98, exemplifica Cyro.

Os culpados são muitos e a verdade é que não sobra muita coisa de pé. O comerciante-jornalista atira de novo contra políticos, que diz estarem desacreditados por promessas não cumpridas e fisiologismos. Os empresários são desunidos, segundo Cassettari, porque precisam cuidar da própria sobrevivência e não encontram interlocução no Poder Público. "Os secretários municipais não são especialistas, pois são nomeados pelas amizades" -- dispara, inclusive contra o passado. Diz que São Bernardo nunca teve um prefeito engenheiro que planejasse a cidade para o boom da industrialização nem autoridades empreendedoras que apoiassem mais estreitamente o parque produtor. "A Marechal Deodoro, principal corredor comercial do Município, é um esculacho. O asfalto está deteriorado, os postes sujos e os ambulantes cada vez em maior número e mais agressivos" -- aponta.

Cassettari só poupa os dirigentes da desindustrialização e do desemprego que roeram São Bernardo na última década, atribuindo o fenômeno à globalização e sobre a qual a cidade não teria domínio. "A robotização da Volkswagen não passa por discussões na Prefeitura" -- contemporiza. Mas se levanta contra a implantação de um condomínio industrial planejado para o Bairro Batistini. Diz que o viário da cidade não comporta mais fábricas nem o território mais favelização. "É até bom que as fábricas vão embora. Assim, desconcentra também a população" -- acredita esse economista formado pela Cacique Tibiriçá, jornalista graduado pela Metodista, esportista por amor e comerciante pela vontade de Deus, como se apresenta o orgulhoso palestrino.


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