Sociedade

Uma senhora
voluntária!

DANIEL LIMA - 05/06/2001

Definitivamente, não há gafe maior do que chamar Valdinéia Cavalaro de socialite. Essa mulher sempre elegante que aparece vez ou outra nas colunas sociais nada tem a ver com a maioria das mulheres igualmente elegantes que fazem aparições mais frequentes nas páginas reservadas aos bem vividos. Valdinéia Cavalaro é reprodução humana do conceito de parece-mas-não-é. É uma metamorfose ambulante, por mais paradoxal que isso possa parecer, porque serenidade e simplicidade transmitem a idéia de que é absolutamente plácida, uniforme e previsível.

Valdinéia Cavalaro pode parecer apenas uma empresária à frente do Centro educacional Jean Piaget, endereço de ponta em ensino de São Bernardo, incrustado em 27 mil metros quadrados de muito verde à margem da Via Anchieta. Os 600 alunos e 150 funcionários que garantem a tradição de 23 anos da instituição que desenvolve da educação Infantil ao Ensino Médio enxergam Valdinéia Cavalaro muito mais que empresária. É empreendedora, conceito superior ao de empresária. Ou seria melhor chamá-la de educadora? Não seria mais justo reconhecê-la como psicóloga? Pensando bem, o título que lhe cabe melhor não seria mesmo o de filantropa?

É nesse todo multiforme que a metamorfose ambulante Valdinéia Cavalaro se transforma no dia-a-dia. Presidente da Associação dos Voluntários para o Combate ao Cancêr no Grande ABC e vice-presidente do Lar Escola Pequeno Leão, Valdinéia Cavalaro traveste-se de educadora, psicóloga, administradora de empresa e voluntária social na medida do necessário e das emergências.

Nada mais natural para quem se dedica ao mesmo tempo a frentes de combate tão distintas – como aos números frios dos balanços financeiros, à emoção motivacional de gerar recursos da comunidade mais receptiva às causas dos doentes e desvalidos e às incursões pelas salas de aula para detectar até que ponto fatores externos não contaminam o ambiente pedagógico que domina também com o uso da psicologia.

Por isso tudo não é difícil que sua ação camaleônica ganhe formas sobrepostas, como se fosse protagonista de um filme de ficção científica. Afinal, é muito difícil separar tantas atribuições quando se tem apenas 18 horas por dia para dar conta das tarefas. Só duvidado poder multiplicador de Valdinéia Cavalaro quem desconhece o determinismo físico e a força espiritual dessa mulher apaixonada por livros e que não se deixou vencer nem mesmo quando um câncer insidioso que costuma matar 88% fez-lhe o teste da coragem e da perseverança. Foram cinco anos de batalhas até que a guerra fosse vencida. Pesou bastante o conhecimento científico de um especialista no assunto, o médico Dráuzio Varella, mas entre 1988 e 1993 Valdinéia Cavalaro não esmoreceu um só instante. Era vencer ou morrer.

Foi o melanoma maligno que direcionou Valdinéia Cavalaro em 1994 para a Fundação Antonio Prudente, que administra a Rede de Combate ao Câncer e o Hospital do Câncer, em São Paulo.

O empurrão do destino apenas especificou o novo rumo de solidariedade a que se dedicaria, porque a veia filantrópica e assistencial tinha raízes familiares e foi apurada pessoalmente. O pai Adolfo Bastos Pereira e a mãe Aurelina fizeram fama na Vila Alpina, bairro paulistano pegado a São Caetano. Excursões benemerentes dos pais levavam conforto espiritual e alimentos a famílias de carentes que ocupavam um morro coalhado de barracos que cedeu espaço à construção do único crematório da Capital – uma ironia do destino imobiliário da área financeiramente mais apropriada à recepção dos mortos do que à invasão dos vivos desafortunados.

Valdinéia não se esquece daquelas jornadas de solidariedade. A peregrinação filantrópica chamou-lhe a atenção para o quadro de carência que já infestava uma São Paulo em efervescência econômica, mas recheada de migrantes. O pai se foi muito cedo, morto aos 57 anos de idade. “Foi a maior perda de minha vida” – diz com o olhar meio perdido essa mulher que tem três filhas já adultas, avó dedicada de três netos.

Como esquecer o pai Adolfo se ele a carregava frequentemente até o Corinthians, clube do qual era diretor social. “O meu pai era tão querido na Vila Alpina que, ao morrer, o comércio fechou as portas”. Mas não é só por isso que Valdinéia chora pelo pai. “Ele me deixou a herança de amar o Corinthians, clube a que tanto serviu” – diz com doçura que provavelmente nenhum dos agressivos Gaviões da Fiel jamais imaginaria ouvir da boca de uma fanática torcedora.

Religiosa dedicada, a vida de cristianismo e de corintianismo de Valdinéia Cavalaro se confunde com a do pai que, ironicamente, nasceu na mesma Bauru em que Pelé começou a dar os primeiros dribles e a fazer os primeiros gols nos campos de terra batida, como se estivesse se preparando para sacudir as redes do Corinthians, sua vítima preferencial. “Meu pai dizia que chegou a dar uns tapas naquele menino bom de bola, sem nunca imaginar que chegaria a fazer tanta fama” – conta Valdinéia. Só faltou dizer – mas o pai dizia, brincando, fanático que era – que se soubesse que o Corinthians sofreria tanto com a genialidade de Pelé, teria lhe dado mais que simples cascudos.

Outro corintiano que entrou na vida de Valdinéia Cavalaro e que aguçou sua veia assistencial é o Padre Rubens Chasseraux, idolatrado na Favela Palmares, em Santo André, não só pelas mensagens espirituais, pelas obras de urbanização e por histórico de assistência material, mas também porque cultiva a rotina de interromper as missas para comemorar gols do mais recente campeão paulista. “Há 32 anos comecei minha atividade de voluntaria social ajudando padre Rubens a dar mais condições de habitabilidade à favela” – revela Valdinéia. No Lar Escola Pequeno Leão, criado pelo amigo Milton Bigucci, empreendedor da área de construção civil, Valdinéia também se desdobra há muitos anos como voluntaria responsável por 72 crianças órfãs e abandonadas.

Valdinéia Cavalaro sai menos do que parece nas colunas sociais. Talvez a explicação para a impressão geral de que é habituê do espaço normalmente reservado para festas é que sua presença é marcante, apesar da elegância discreta. Aos 51 anos, Valdinéia é uma mulher bonita, agradável, mas em nada lembra as espalhafatosas socialites tão famosas quanto pouco ocupadas. Não é difícil imaginá-la igualmente bonita e elegantemente discreta mesmo se resolver vestir-se como dona-de-casa. Talvez seu olhar seja penetrante demais.

É nesse ponto que prevalece a psicóloga. Ou seria a educadora que, quando criança, se escondia no banheiro para devorar livros longe da advertência de dona Aurelina, que temia pela visão da filha com tanta leitura? O fato é que Valdinéia Cavalaro extrai o máximo das atividades que exercita. Nas primeiras horas do dia à frente do colégio Jean Piaget trata de resolver todos os problemas administrativos e pedagógicos. É comum vê-la se revezando entre uma e outra sala de aula. Ouve os alunos e os professores sobre o desenrolar do conceito construtivista que abraça com paixão desde que descobriu a metodologia da inteligência estudada pelo suíço Jean Piaget. Na escola, Valdinéia sabe quem é quem sob dois pontos básicos que garantem a fama de eficiência da escola – o aproveitamento de ensino e os relacionamentos interpessoais dos alunos.

O teste de sociograma é metodologia sob intervenção da psicóloga Valdinéia Cavalaro para diagnosticar até que ponto os alunos praticam relacionamento saudável. Basicamente se descobre sem margem de erro quem são as lideranças intelectuais e esportivas de cada sala de aula, quem exerce o papel de eminencia parda e quem prefere se isolar dos demais, inclusive do tipo mais comum, formado pelos inseridos. A definição começa com a própria escolha entre os alunos, através de voto secreto. Quase todos os alunos já passaram pelo teste a partir da 3ª série do Ensino Fundamental. Há sempre um Golbery do Couto e Silva, articulador estratégico de governos militares, por trás de cada liderança. Descobrindo-os em tempo, com o teste, é comum transformá-los em lideranças que a timidez obscurece.

O teste de sociograma também detecta lideranças esportivas de cada grupo, geralmente diferenciadas das lideranças intelectuais. Esses matizes, explica Valdinéia Cavalaro, oferecem a potencialidade da estrutura de ensino. E também bloqueia a transposição para dentro da escola da ameaçadora violência a que os alunos estão submetidos além-muro. “O que os alunos mais lamentam nas conversas é que o mundo de paz que têm aqui dentro não se reproduz lá fora” – critica, no mesmo tom de voz suave do relato sucinto da odisséia do câncer que a atingiu. 

É essa capacidade de absorver os impactos das contrariedades que faz de Valdinéia Cavalaro liderança agregadora na Associação de Combate ao Câncer no Grande ABC. São 150 voluntárias espalhadas por muitas ações comunitárias e quatro endereços onde a dor e a desesperança são adversários a ser combatidos. No Hospital Anchieta, no Caisme (Centro de Integração à Saúde da Mulher), no Hospital Universitário, todos em São Bernardo, e também no novo Centro de Oncologia da Faculdade de Medicina do ABC, em Santo André, a tropa de solidariedade dirigida por Valdinéia Cavalaro está a postos de avental azul e crachá. Um esquadrão que alimenta e reconforta os enfermos.

Resistente a holofotes, Valdinéia Cavalaro procura descentralizar as conquistas das entidades assistenciais das quais faz parte. Reconhece, entretanto, que há algo que julga inexplicável por continuar à frente da entidade voltada ao câncer, porque o estatuto social determina por sugestão própria que o mandato seria de apenas um ano. É claro que não a deixaram sair. Afinal, quem consegue reunir numa mesma comandante 32 anos de solidariedade, 30 de pedagogia, 27 de psicologia e 23 de empreendedorismo educacional?


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