O assassinato social de Saul Klein começou nas páginas digitais do site UOL e prosseguiu no dia seguinte nas páginas impressas do jornal Folha de S. Paulo. O UOL publicou antecipadamente a matéria completa que a Folha reproduziria no dia seguinte, antevéspera de Natal. Esta é a sexta matéria de uma série especial sem prazo para terminar.
Esse trabalho mostrará o quanto o Caso Saul Klein rompeu o limite do razoável. Sobretudo porque faltou o insumo principal: a materialidade da versão de aliciamento e estupro sexual. A mídia se deixou levar por um enredo suspeitíssimo.
A coluna de Mônica Bergamo, que vai muito além do entretenimento de elites, convertendo-se em espaço concorridíssimo entre leitores em geral, fez de Saul Klein espécie de monstro sexual. Como se a hecatombe deflagrada na noite anterior no Universo Online já não fosse suficiente ao alimentar as engrenagens das mídias sociais.
Liberdade de imprensa
Incluir a bombástica matéria da Folha de S. Paulo (e sempre se entendendo o UOL como multiplicador incontrolável) em compartimento no qual a liberdade de imprensa ultrapassa os limites da ponderação não é uma arapuca conceitual que rejeite a importância da atividade jornalística. Diferentemente disso, é a reafirmação da liberdade de imprensa como forma de se diferir de qualquer outro tipo de intermediação informativa confiável. Casos do voluntarismo das redes sociais tão combatidas.
A ausência de materialidade é algo a ser avaliado com extrema cautela. Sobretudo nestes tempos em que o jornalismo profissional desfila restrições na maioria dos casos mais que providenciais às algazarras delitivas das redes sociais.
A contradição é que o mesmo jornalismo profissional – e o Caso Saul Klein não é exceção – também comete equívocos que provocam estragos monumentais.
Ataque frontal
Uma análise da reportagem publicada na Folha de S. Paulo (no UOL seguiu praticamente a mesma trilha, com uma ou outra mudança nada significativa) não deixa dúvidas sobre o que não custa repetir: trata-se de escandaloso assassinato social de Saul Klein. O empresário foi abatido frontalmente. Não contou com a menor possibilidade de mudança de rumo do caso. A defesa de Saul Klein foi ouvida por mera formalidade.
A decisão de publicar a matéria estava tomada, independentemente de eventual contraditório. Um contraditório que, ao ser utilizado, apenas serviu como tecido de uma máscara de ética de suposta equanimidade de tratamento editorial. Uma velha e surrada roupagem de democracia informativa.
Ou alguém teria a coragem de dizer que, diante de versões controversas, a melhor alternativa para levar ao público uma situação de supostos crimes sexuais, seria a opção por uma fonte oficiosa, de vazamento acusatório, ou uma defesa com identidade e elementos probatórios de que o buraco é mais embaixo?
Fonte descredenciada
Uma decisão judicial com base num inquérito do Ministério Público Estadual nem sempre é uma peça imune a imperfeições investigativas. O Caso Saul Klein é uma teia de casos menores que influenciaram a decisão de uma farsante, no caso a ex-namorada do empresário, Ana Paula Santos.
Ana Paula é chamada de Banana pelas mulheres que selecionava e coordenava em conjunto com uma outra mulher de uma empresa de eventos no atendime3nto aos prazeres de Saul Klein. Não é uma vítima de Saul Klein. Tratamos disso em capítulos anteriores. Mas voltaremos a colocar essa personagem no foco de explicações contundentes. Ana Paula é a responsável por todo o movimento supostamente espontâneo que culminou na ação do Ministério Público Estadual. É claro que não contou muitas verdades ao ser amparada pelo MPE.
MP ludibriado
O MP da promotora criminal Gabriela Manssur, como já mostramos nesta série de análises, ultrapassou os limites da pressa e da credulidade. Confiou numa fonte mais que suspeita e, mais que isso, sem provas materiais.
A única dúvida sobrevivente ao material publicado é sobre a identidade da fonte que abasteceu o jornalista Bruno Soraggi, autor do texto. Teria sido a promotora criminal do Ministério Público Estadual Gabriela Manssur a responsável pela quebra do lacre de “segredo de Justiça” imposto à denúncia encaminhada ao Judiciário ou foi um representante do Judiciário?
Um exame relativamente detalhado sobre a reportagem da Folha de S. Paulo não deixa dúvida: houve deliberada ou descuidada opção pela condenação moral e pré-judicial do filho de Samuel Klein, imigrante que fundou a Casas Bahia em São Caetano no início da década de 1950. O título no alto da página da Folha de S. Paulo é emblemático:
Filho do fundador das Casas Bahia é acusado de estupro e aliciamento por 14 mulheres.
Um caminhão de condenação
Os primeiros parágrafos do texto que ocupou sete-oitavos da página B9 de 23 de dezembro fechavam o caixão de preferência opcional pelo massacre contra Saul Klein:
O filho do fundador das Casas Bahia Saul Klein, 66, entregou o passaporte à Justiça e está proibido de ter contato com 14 mulheres que acusaram o empresário de aliciá-las e estuprá-las em festas que reuniam dezenas de garotas em sua casa, em Alphaville, desde 2008. As duas medidas são precauções solicitadas pelo Ministério Público de SP para o andamento da investigação das denúncias, que estão mantidas em segredo de Justiça em um inquérito policial na Delegacia de Defesa da Mulher de Barueri. Em julho, a polícia arquivou o outro inquérito com alegações semelhantes e que apurava a suposta exploração sexual de uma menor de idade por Klein.
Linhas auxiliares
Com o título e a abertura da matéria em tons condenatórios, sem contraponto a permear os enunciados, a reportagem da Folha de S. Paulo também carregou nas cores dramáticas nas “linhas auxiliares do título”, apêndice explicativo que graficamente interfere na complementação da manchete de página. Eis o que constou das linhas auxiliares:
Saul Klein, que vendeu sua parte na empresa em 2010, entregou o passaporte à Justiça no início de dezembro: defesa diz que é tentativa de extorsão.
Edição demolidora
Contasse a Folha de S. Paulo com provas cabais do Caso Saul Klein, a abordagem teria sido adequada. O jornalismo não pode ser condescendente com quem quer que seja. Não foi, entretanto, o que se viu. A foto de Saul Klein sobre a legenda (“O empresário Saulo Klein em boate em São Paulo, em 2002”) completou a tarefa mais explícita de investida contra o equilíbrio esperado para uma situação complexa ainda a ser investigada.
Título, legenda, linhas auxiliares e uma foto de Saul Klein de 2012, com ares de bon-vivant dispensariam maiores incursões informativas. A sepultura social do ex-executivo familiar da Casas Bahia estava cavoucada.
O que faltaria para que a desgraça de Saul Klein se completasse na esteira da irradiação das redes sociais que, já na noite anterior, a distribuição da reportagem pelo UOL garantiria? É claro que uma investida do Fantástico, da Rede Globo. Que veio em seguida.
Equanimidade falsa
Ainda sobre a cobertura da Folha de S. Paulo, a reportagem não cometeu o deslize flagrante do Fantástico ao reservar à defesa de Saul Klein espaço reduzidíssimo, de tapa-buraco editorial. A coluna de Monica Bérgamo foi mais harmoniosa num quase empate técnico entre as duas intervenções, de ataque e de defesa a Saul Klein. Mas o conteúdo (e o tempo vai mostrar) e a edição não correspondem à realidade dos fatos da forma tão intensamente caracterizada como insumos de crime continuado. Não é pouca coisa em termos de desconfiança do conteúdo da denúncia a simples tipificação de crime continuado. Um estuprador temido ou um namorador convincente, o que é mais lógico diante dos fatos narrados?
Mais Folha de S. Paulo
Não custa reproduzir a complementação da reportagem da página da Folha de S. Paulo para que se tenha a dimensão mais correta do tratamento dispensado à defesa de Saul Klein.
A defesa do empresário diz que o seu cliente é um sugar daddy, termo que descreve homens que têm fetiche em sustentar financeiramente mulheres jovens em troca de afeto e sexo, mas alega que ele jamais cometeu os crimes apontados pelas alegadas vítimas. “O sr. Saul Klein vem sendo vítima de um grupo organizado que se uniu com o único objetivo de enriquecer ilicitamente às custas dele, através da realização de ameaças e da apresentação de acusações falsas em âmbito judicial, político e midiático, afirma o advogado André Boiani e Azevedo, que representa Klein.
Mais Folha de S. Paulo
Várias dessas pessoas já conseguiram se aproveitar dele em outras oportunidades, causando-lhe prejuízo milionário, e estavam acostumadas a essa situação. Quando perceberam que esse tempo acabou, passaram a difamá-lo publicamente, segue Azevedo. “Ele (Saul) sente profunda indignação diante desse quadro, mas se defenderá com toda a tranquilidade, pois tem absoluta confiança na polícia, no Ministério Público e no Poder Judiciário, que já atestaram sua inocência em investigação anterior e certamente o inocentarão mais uma vez”.
Mais Folha de S. Paulo
O advogado afirma que o seu cliente contratava uma agência que lhe trazia sugar babies (como são chamadas as garotas que se dispõem a serem bancadas pelos daddies) e que ele mantém diversos relacionamentos simultaneamente. “Ele era o “daddy” de todos os “dadies” do qual todas as “babies” gostariam de ser “babies”, segue Azevedo. Ele aponta que os ataques têm por objetivo chantagear e achacar Saul desde 2019, quando este parou de adquirir o serviço da empresa que lhe apresentava as mulheres, por desconfiar que os seus proprietários estavam tentando extorqui-lo.
Mais Folha de S. Paulo
Saul Klein é filho de Samuel Klein (1923-2014), fundador das Casas Bahia. Ele atualmente disputa a herança do pai na Justiça com o seu irmão mais velho, Michel Klein, para quem Saul vendeu a sua parte societária na rede varejista em 2010 pelo valor estimado em R$ 1,5 bilhão. O empresário também é um dos atuais donos do time de futebol Ferroviária, de Araraquara, no interior de SP, e foi candidato (não eleito) a vice-prefeito de São Caetano do Sul neste ano, cidade cujo time de futebol também teve ele como investidor por anos.
Mais Folha de S. Paulo
Os relatos das 14 vítimas foram feitos à Ouvidoria da Mulher no Conselho Nacional do Ministério Público, que encaminhou o conteúdo ao Ministério Público de SP (MPSP). A promotoria paulista solicitou à Justiça medidas restritivas para que o empresário não deixe o país nem contate as mulheres que o acusam. O pedido foi acatado pela 2ª Vara Criminal da Comarca de Barueri. A decisão judicial elenca informações apresentadas pelo MPSP baseadas nos testemunhos das supostas vítimas. A.P.F.S; E.D.S.M; M.C.D.C; N.E.T.M.M.C; I.P.D.F; B.R.B.D.O; A.L.M.P; J.F.S; P.Z; S.G.D.S; M.D.S.M e L.R.G. “Segundo constou do requerimento, todas as mulheres acima foram vítimas de aliciamento sexual”, aponta o despacho da Justiça citando informações elencadas pela promotoria. “Eram procuradas por aliciadores em redes sociais e outros canais, informadas falsamente de que havia interesse na contratação delas por parte de uma empresa e conduzidas a uma apresentação, a título de teste, para o requerido Saul”.
Mais Folha de S. Paulo
Os testes eram feitos em um flat e elas tinham que usar biquinis ou roupa íntima. Elas eram convencidas de que, se satisfizessem a lascívia do requerido Saul, poderiam ser contratadas para eventos na “mansão” de Alphaville, quando então receberiam de mil a R$ 3 mil reais, ou numa casa de campo dele em Boituva”, segue a narrativa. “Nesses eventos, que podiam contar com 15 a 30 moças, elas tinham que exibir o tempo todo de biquini e submeter-se a atividades sexuais com o requerido Saul, inclusive de modo humilhante e a contragosto. Também poderiam ter que ingerir drogas, permanecer trancadas em um quarto por um dia interior e aceitar se submeter a consultas com médicos, ginecologistas e cirurgião plástico, respectivamente, para cuidar das persistentes e reiteradas doenças sexualmente transmissíveis que as acometia e de outras enfermidades que apresentaram, bem como receber aplicações de botox ou outros tratamentos destinados a prepará-las para as sessões com o requerido Saul”.
Mais Folha de S. Paulo
“Salientou o Ministério Público o fato de que as propriedades eram sempre vigiadas por seguranças armados que as mulheres eram submetidas a atos de brutalidade e de humilhação, exemplificando com cusparadas. Telefones celulares normalmente eram confiscados quando da chegada delas ao local “cita o despacho. “Em razão da constante exploração, da dependência econômica, do subjugo físico e da intimidação moral, muitas mulheres adoeceram e uma delas chegou a se suicidar”.
Mais Folha de S. Paulo
Foi realçado ainda o fato de que eram providenciados documentos falsos às mulheres, com nomes alterados, o que era especialmente importante para as adolescentes”, emenda o documento sobre acuações sobre a possível relação de Saul com menores de idade. “Elas também disseram que eram ameaçadas a não tratar do que ocorria nesses locais com quem quer que fosse, sob pena de sofrerem consequências”, continua.
Mais Folha de S. Paulo
A Folha conversou por telefone com duas das alegadas vítimas que acusam o empresário. Uma conheceu Saul em 2008 e conviveu com ele até este ano. A outra começou em 2013. Nenhuma delas quis se identificar, alegando que não querem ser expostas e que têm medo de represálias do empresário. Elas corroboram os relatos elencados na decisão judicial. Uma terceira suposta vítima desistir de falar com a reportagem.
Mais Folha de S. Paulo
Azevedo aponta que a relação criada entre Klein e as mulheres nem sempre acarretava atos sexuais, mas que quando isso ocorria era algo consensual. Ele afirma que o empresário dava presente a elas, mas que ele nunca fez pagamentos às suas amantes e não participava desta negociação – quem tratava disso era a agência, que também se responsabilizava por verificar as idades de todas as garotas para que fossem maiores de idade. “As participantes estavam ali de livre e espontânea vontade – e saliente-se, todas queriam voltar aos eventos, em demonstração de que estravam de acordo com o que ali acontecia, diz ele. A advogada Gabriela Souza, que representa as vítimas, afirma que só se manifestará em janeiro”.
Total de 1097 matérias | Página 1
21/01/2025 PAULINHO, PAULINHO, ESQUEÇA ESSE LIVRO!