Economia

O que vamos fazer para fugir
da armadilha do Rodoanel?

DANIEL LIMA - 22/11/2021

Qualquer configuração institucional a ser criada e aperfeiçoada no Grande ABC não pode subestimar a importância de dar um drible da vaca de pragmatismo na armadilha do Rodoanel.  Será um erro crasso. É difícil encontrar o caminho da roça da reversibilidade de uma desastrada equação desenhada durante décadas e efetivada a partir do começo do século, com a inauguração do trecho Oeste e em seguida do trecho Sul (além do Leste menos significativo e do Norte em construção), mas é preciso mesmo queimar as pestanas.  

O presente de grego do Rodoanel colocou as debilidades produtivas do Grande ABC escancaradíssimas. Propagou-se a ideia de que teríamos um organismo produtivo incrementado pelo endorfina da competitividade e constatamos que estamos em depressão.  

Desde os tempos da revista LivreMercado de papel e também desde 2001 desta revista digital, chamamos a atenção para os estragos que o Rodoanel produziria na economia do Grande ABC.  

Vizinhança faz festa  

A carga adicional de deslocamento da produção industrial seria a consequência natural para um território que teria o serpenteado da obra praticamente uma invasora física tangencial mas intestinamente deletéria porque não acrescentaria potencialidade produtiva que compensasse as perdas latentes. Não deu outra. A vizinhança na Grande São Paulo, sobretudo a Oeste, da chamada Grande Osasco, locupleta-se do traçado. É um show de bola sem hora para terminar. Ano após ano, acrescentam-se ganhos.  

Duas décadas passadas, triunfalismo manifestado por instituições que não enxergam o ontem, quanto mais o hoje e o amanhã, e temos um retrato da calamidade.  

Para você que ainda não está acreditando no que está lendo (ou seja, que o Rodoanel Oeste e o Rodoanel Sul são fatores decisivos neste século à derrocada do Grande ABC, assim como a macropolítica de FHC, o sindicalismo rebelde e a guerra fiscal o foram no século passado) vou repassar alguns números emblemáticos.  

G-3 de goleada  

Quais foram os grandes municípios mais favorecidos pela nova logística de transporte que corta a maior metrópole sul-americana? Guarulhos, Barueri e Osasco. Cito apenas esses três por questões simplificadoras, no bom sentido. Poderia acrescentar todos os municípios dos respectivos entornos. Que também aproveitaram o traçado mais que favorável do setor Oeste e punitivo do setor Sul.  

O PIB (Produto Interno Bruto) dos três principais municípios da Grande São Paulo (além da Capital e do Grande ABC) apresentou crescimento fantástico quando comparado aos sete municípios locais. Guarulhos, Osasco e Barueri avançaram o dobro do Grande ABC no período de 19 anos que começa em janeiro de 2000 (ano-base de 1999) e se encerra em 2018.  

Dentro de um mês teremos os dados oficiais do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) relativos ao PIB dos Municípios do ano de 2019. Podem apostar que a diferença vai aumentar, indomável que é na linha do tempo.  

Virada do jogo  

Em 1999, quando o trecho Oeste do Rodoanel estava na ponta de agulha de ser inaugurado (em 2002), o PIB do Grande ABC era levemente superior ao do G-3, como denominamos o grupo formado por Guarulhos, Osasco e Barueri. Eram R$ 26.884.25 bilhões para o Grande ABC e R$ 22.317,40 para o G-3.  

Na ponta da pesquisa e dois trechos conjugados do Rodoanel prontos, em 2018, a vantagem do G-3 é estratosférica: R$ 188.501,41 bilhões ante 126.573,33 bilhões do Grande ABC. O crescimento nominal do G-3 foi 32,85% superior ao crescimento nominal do Grande ABC.  

Qualquer consultoria especializada em competitividade pode fazer bem-feita uma lição que o Grande ABC precisa acordar para contratar imediatamente, em vez de cair na conversa mole de ouvir empresários do setor metalúrgico sobre o que os atormenta de maneira específica, como pretende a Agência de Desenvolvimento Regional.  

Reformismo total  

Trata-se de um jogo de xadrez que exige conhecimentos amplos, macroconhecimentos por assim dizer. Individualidades empresariais importam, mas não têm a capilaridade reformista de que se precisa. A Agência Regional tem boas intenções, mas como se sabe, de boas intenções o inferno está cheio.  

Esse é um exemplo elementar das razões que levam CapitalSocial (e anteriormente LivreMercado) a recomendar, quando não a cobrar, para não dizer exigir, que autoridades públicas saiam de encapsulamentos caseiros sem qualificações técnicas e liberdade ideológica para perscrutar o futuro da região com base no estoque de ganhos e perdas disponível. Não há mais tempo a perder.  

Estamos perdendo faz muito tempo de goleada para Guarulhos, Osasco e Barueri, nossos vizinhos do outro lado da Capital. O fetiche salvacionista do Rodoanel é uma cola que não colou nem vai colar enquanto não se buscarem alternativas, mudanças, reprogramações táticas, coisas assim. Esse corpo obeso da baixa qualificação competitiva precisa de uma dieta rigorosa.  

Andando para trás 

De pretendido suporte a novas investidas da região, o Rodoanel ganhou mais que a forma de breque de mão puxado: é mesmo uma marcha-a-ré descontrolada. 

A título de proteção ambiental (uma medida mais que alvissareira, defensável e elogiável) o Grande ABC foi sacrificado na Região Metropolitana de São Paulo no altar do isolacionismo econômico-produtivo pelo trecho Sul do Rodoanel, inaugurado em 2010. Como se já não bastasse a derrota infligida antes, em 2002, com a inauguração do trecho Oeste, amplamente favorável e sem restrições ambientais drástica.  

Ou seja: entramos tarde num jogo de competitividade no interior da Grande São Paulo e, mais que isso, dinamitado por critérios protecionistas soterrados no G-3. Os engenheiros da obra enxergaram o traçado exclusivamente com olhos de engenheiros. Faltaram economistas, sociólogos, urbanistas e tudo o mais.  

Pós-operatório doloroso  

Não se ataca o coração metropolitano apenas com instrumentos cirúrgicos que desentopem artérias contraprodutivas. O pós-operatório pode ser doloroso a determinadas regiões do organismo.  

Confesso que não tenho a mínima ideia do que pode ser feito para minimizar o estrago econômico e consequentemente social sofrido pelo Grande ABC por causa do Rodoanel travesso. 

Não tenho conhecimento suficiente para sequer sugerir intervenções que ofereçam sem risco ao conceito de qualidade ambiental algumas medidas que possibilitariam maior interseção do traçado no território do Grande ABC. Acho mesmo que não haveria medida com força reestruturante, porque o traçado geneticamente longínquo do Rodoanel em relação ao tecido urbano e produtivo da região está consumado. 

Bagunça interna  

Com uma logística interna que lembra o inferno, tantos são os desperdícios de tempo e dinheiro nos deslocamentos entre municípios encalacrados, ao Grande ABC só resta contar com a humildade dos ignorantes requisitar os préstimos de gente que entende para valer do riscado de competitividade.  

Uma iniciativa indispensável até mesmo para chegar à conclusão de que não existe saída viável senão chorar. Ou buscar compensações indenizatórias, quem sabe, por conta de estragos consolidados e mensuráveis. O governo do Estado de São Paulo vendeu gato por lebre em forma de Rodoanel.  

Cantamos essa caçapa ante a gritaria geral dos triunfalistas de sempre. Agora estamos com um elefante à nossa porta.  

Casa assombrada  

O Grande ABC antes da chegada dos dois traçados do Rodoanel era uma casa com fama de assombrada pela desindustrialização. O Grande ABC depois da chegada dos dois traçados é uma casa com provas evidentes de assombrações da desindustrialização.  

Tanto é verdade que a variação da produção industrial neste século -- de 145% em termos nominais, sem considerar a inflação -- está abaixo da inflação do período pelo IPCA (220%). E está entre os piores resultados do G-22, o Clube dos 20 Maiores Municípios do Estado de São Paulo (exceto Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra, incluídos por formalidade, e da Capital, excluída pela grandiosidade). 

Por conta da insensibilidade, quando não do desconhecimento, para não dizer do alheamento completo das muitas questões que estão na raiz do empobrecimento continuado do Grande ABC neste século, em processo que começou nos anos 1980, a agenda de reformas não pode ser um jogo jogado supostamente de forma democrática.  

Perdendo tempo  

Vou explicar: quando se colocam determinadas questões sob a cobertura politicamente correta de participação da sociedade, corre-se o risco de perda de tempo, imprecisão, politização e desperdício.  

Quero dizer com isso e com clareza o seguinte: a agenda regional numa eventual composição diferenciada de agentes que tratariam a Economia como Via Preferencial não pode fugir da bitola pragmática de especialistas. Gente que sabe o caminho das pedras e das evidências do caminho das pedras.  

Vou enfatizar ainda mais o pressuposto da necessidade de chamar apenas quem é do ramo econômico: não faltam agentes públicos e privados da região que ao lerem este texto e observarem as informações sobre o Rodoanel, são capazes de dizer que este jornalista endoideceu. Ou seja: essa gente não sabe o que faz e o que diz porque não acompanha o ritmo da chuva e da nevasca econômica do Grande ABC e, portanto, precisa ser barrada do baile. 

Que coletivismo?  

Pior que essa situação de desconhecimento, que geraria impropriedades, é chamar para o jogo da verdade gente que conhece relativamente bem a verdade mas usa de pós-verdades por razões interesseiras para melar o jogo da reviravolta organizacional que já tardou.  

Então, ficamos assim: o Rodoanel é um dos mais gigantescos problemas que o Grande ABC precisa contornar quando se imagina o que seremos por volta de 2050, ano no qual provavelmente não estarei mais por estas bandas (exceto no mundo digital perene) e emblematicamente um marcador decenal da chegada das montadoras de veículos em São Bernardo no século passado.  

Uma chegada com digitais exclusivas do governo federal aos nos contemplar por obra geográfica entre o Planalto e o Porto de Santos, ou seja, sem qualquer coisa que lembre organização institucional interna. Preciosidade coletiva que continuamos a necessitar sem descambar para o proselitismo coletivista. 



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