Economia

Indústria encontrará saída
com lideranças sindicais?

DANIEL LIMA - 05/08/2022

Rafael Marques passou 30 anos envolvido no setor metalúrgico de São Bernardo. Chegou ao posto máximo, de presidente do sindicato onde vicejou Lula da Silva. Hoje, Rafael Marques é presidente do Instituto Trabalho, Indústria e Desenvolvimento, TID-Brasil.  

Faço a seguinte pergunta e sugiro, de imediato, que pense bem antes de responder: você confiaria a ele e a seu grupamento profissional o futuro do setor industrial do País? 

A resposta imediata seria precipitada para quem acha que tudo é preto ou branco. Rafael Marques e os trabalhadores em geral devem e precisam ser ouvidos em qualquer instância institucional que cuide do futuro do setor industrial do País.  

Eles são imprescindíveis. Sem eles, sem que tudo que já fizeram e pretendem fazer, teremos um corpo deformado que resultará em medidas igualmente deformadas.   

Para que o Brasil industrial do futuro dê certo, ou entre em rota de conexão nacional e internacional num cenário mais que nebuloso, é indispensável que os exemplos dos metalúrgicos do Grande ABC, notadamente do sindicato que fez Lula da Silva brotar para o mundo, sejam examinados com a lupa da independência.   

O que peço é que tenha muitas horas nessa calma reflexiva, muitas horas nessa calma reflexiva, porque os 40 anos de sindicalismo regional sob a batuta dos metalúrgicos apesentam saldo bastante controverso.   

Você não vai ler isso na Velha Imprensa impressa. A Velha Imprensa impressa sempre dependeu de fontes de informação dos líderes sindicais e, para sustentar as relações que se traduziram em notícia, estabeleceu-se convivência conciliatória, em detrimento de realidades que afloraram e se impuseram.   

VISÃO EXCLUSIVISTA  

Rafael Marques (não esqueça: 30 anos na indústria de São Bernardo) escreveu hoje um artigo no Diário do Grande ABC sob o título “”Desenvolvimento social como missão”. Vou reproduzir apenas alguns dos primeiros trechos do material, para posterior avaliação: 

 “A desindustrialização brasileira é um processo que se inicia na década de 1980 e vem se agravando desde 2015, em decorrência da crise econômica e institucional que se instaurou no país, resultando em queda mais acentuada da participação da indústria no PIB (Produto Interno Bruto)nacional, com aumento recorrente de importações, elevação do déficit comercial, aumento da participação de produtos industriais menos sofisticados e desnacionalização de cadeias produtivas”.  

Antes mesmo que fosse publicado o texto no Diário do grande ABC, li há  pelo menos 40 dias, com máxima atenção,  o documento preparado pela instituição presidida por Rafael Marques.  

O material estava e talvez continue na fila de abordagem nesta revista digital. Fui adiando, adiando e adiando a análise com contrapontos essenciais ao entendimento do que se pretende. Ler o documento e memorizar os pontos principais me auxiliam nesse momento, à falta de detalhamentos no artigo do sindicalista no Diário do Grande ABC de hoje.   

FALTA AUTORIDADE  

O resumo da ópera é que o sindicalismo metalúrgico do Grande ABC, à frente da instituição de Rafael Marques,  não tem autoridade monopolista como se pretende para ditar regras de mudanças no perfil do setor de transformação do País. 

Não tem essa autoridade porque, por mais que acerte aqui e ali na avaliação do quadro, sempre trata a situação como universo exclusivo.  Não existe no documento aprovado em assembleia nada que trate, por exemplo, de alguns pontos viscerais de rescaldos do sindicalismo metalúrgico (e por extensão às demais atividades fabris) durante os últimos 40 anos no Grande ABC: 

1. Desprezo ao outro lado do balcão da sociedade, ou seja, aos agentes públicos, privados e à sociedade como um todo nas iniciativas que culminaram em processo histórico de empoderamento sindical e empobrecimento social do Grande ABC. As lideranças sindicais metalúrgicas sempre se consideram a fina flor do conhecimento.  

2. Tratamento igual a desiguais, sintetizado em pautas de reivindicações que colocavam no mesmo saco de gatos e de legitimidades grandes, médias e pequenas empresas, cujos custos salariais e supostas conquistas sindicais eram e continuam a ser distintos, com peso relativo muito mais agressivo às pequenas e médias corporações, vítimas preferenciais de mortalidade ou de deserções da praça regional.  

3. Conflito permanente com as empresas, por conta do antagonismo dogmático ao capital. O viés ideológico permeava as relações trabalhistas tendo como base interesses posicionados nas premissas sindicais, fortemente influenciadas pelo ambiente internacional , sem se levar em conta o contexto diferenciador. Um exemplo: recorriam-se a propostas pautadas pelo assalariamento médio do trabalhador norte-americano e mesmo europeu, sem se considerar os níveis de produtividade. Um primarismo econômico-social que contribuía à estigmatização das relações entre capital e trabalho e lustrava o ego de militância socialista-estatista. 

4. Contradição alarmante entre a glorificação do Estado-Todo-Poderoso e as pautas de reivindicações direcionadas à proteção, quando não ao privilégio,  dos trabalhadores à custa do encarecimento da folha de pagamentos com ganhos paralelos em alimentação, transporte, educação e saúde. Resultado: um Custo ABC sobressalente ao Custo Brasil. Aliás, a expressão “Custo ABC”, salvo falha de memória, foi extraordinariamente bem definida pelo empresário e médico Fausto Cestari.  

5. Por força da atuação sindical voltada especialmente ao setor automotivo de São Bernardo, mas com tração regional e também a outras atividades, criou-se no Grande ABC o que uma Reportagem de Capa da revista de papel LivreMercado chamou de “Capitalismo de terceira classe”. Ou seja, o modelo econômico regional fortemente influenciado pelo sindicalismo metalúrgico esculpiu um mapa do inferno econômico. 

6. O documento preparado pelo instituto de Rafael Marques não faz qualquer menção aos desajustes macroeconômicos e às perdas industriais do Grande ABC por causa da atuação desastrosa da presidente Dilma Rousseff, a reboque de políticas populistas do ex-sindicalista e então presidente da República, Lula da Silva que, durante oito anos, quatro dos quais navegando em águas internacionalmente favoráveis na economia, esmerou-se em promover a maior gastança estatal de que se tem notícia no território nacional.  

7. A desindustrialização brasileira vem de longe, mas o líder sindical omite uma realidade também histórica: o Grande ABC inaugurou o placar do desastre de ver a indústria perder viço para atividades de baixo valor agregado entre outras razões porque flertou o tempo todo com a intolerância nas relações trabalhistas (que superaram o legítimo direito de defesa da classe sem se descuidar do restante da sociedade). Outros fatores também pesaram e já foram esmiuçados nesta revista digital, caso da guerra fiscal, do governo Fernando Henrique Cardoso, do trecho sul do Rodoanel, entre outros. Também esqueceu o líder sindical que a desindustrialização brasileira não é generalizada. Há inúmeros municípios que se industrializaram exatamente porque fugiram de negatividades produtivas, entre as quais o sindicalismo enraivecido que prevaleceu na região – e que mesmo menos agressivo, ainda se manifesta.   

Para completar, vou reproduzir apenas alguns trechos (a análise foi histórica, com quase duas dezenas de páginas) de um texto que publiquei em janeiro de 2001 na revista LivreMercado, predecessora de CapitalSocial.  

  

Entenda o capitalismo de

terceira classe do Grande ABC 

 DANIEL LIMA - 10/01/2001 

 

O capitalismo de terceira classe ocupa um terço da economia do Grande ABC. As 295 mil pessoas desse cinturão são predominantemente homens, chefes de domicílios e têm escolaridade inferior aos protagonistas do capitalismo do andar de cima, formado pela primeira classe de quem está no raio de ação direta das montadoras de veículos e das autopeças sistemistas e pela segunda classe dos demais trabalhadores de atividades menos generosas em salários. Já os desempregados — 212 mil pessoas, segundo as últimas estatísticas — integram o que pode ser chamado de capitalismo de quarta classe. 

MAIS 2001  

Composto por autônomos, pequenos negócios com até cinco funcionários e assalariados familiares ou não, o capitalismo de terceira classe do Grande ABC difere pouco do capitalismo de terceira classe da Região Metropolitana de São Paulo: é fortemente informal, isto é, vive em larga escala à margem da legalidade dos negócios e tem 74% de seus ocupantes distante da Previdência Social. Para produzir esta reportagem, interpretei detidamente estudo divulgado no mês passado pela Agência de Desenvolvimento Econômico do Grande ABC e produzido por João Batista Pamplona, coordenador de pesquisas da entidade e professor doutor do Departamento de Economia da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). O resultado da pesquisa do professor João Batista Pamplona apresenta estreita relação com o acompanhamento histórico da economia do Grande ABC, bem como suas repercussões sociais.   

MAIS 2001  

Embora em nenhum parágrafo o autor do trabalho faça mergulho mais profundo sobre as origens dos resultados que escancaram o empobrecimento do Grande ABC ao longo dos anos 90, a realidade é que o peso do Estado brasileiro, cuja carga de impostos atinge perto de 33% do PIB (Produto Interno Bruto), está intimamente ligado às dificuldades dos empreendedores autônomos e dos pequenos negócios familiares, como poderia ser resumido o quadro pesquisado.  

MAIS 2001  

O título do documento apresentado pelo professor Pamplona (O Setor Informal na Região do Grande ABC Paulista) não corresponde necessariamente ao objeto de estudo. Afinal, não se trata de análise exclusiva da economia informal, já que parte da economia formal também integra as estatísticas. O universo pesquisado contempla 295 mil pessoas ocupadas no Grande ABC no biênio 1998-1999, ou 32% do total de ocupados. Desse total, nada menos que 55% (161 mil) são autônomos, 18% (53,1 mil pessoas) são empregadores e donos de negócios familiares, 21% assalariados (ou 62 mil pessoas) e 7% (ou 20 mil pessoas) trabalhadores familiares. 

MAIS 2001  

O setor de serviços reúne a maioria desse contingente (59%), contra 28% do comércio e apenas 9% da indústria. Ou seja: dos protagonistas do capitalismo de terceira classe do Grande ABC, 87% estão no setor terciário. O dado expõe em números o que se conhecia por realidade prática: os demitidos industriais (foram 125 mil com carteira assinada entre 1989 e 1997, segundo dados do Ministério do Trabalho) deslocaram-se em massa para o ramo de serviços.  

MAIS 2001  

Trata-se de atividade de baixíssimo valor agregado porque o Grande ABC ainda não conseguiu fomentar vocações que reduzam o impacto dos salários e benefícios aos quais ex-trabalhadores estavam acostumados no setor industrial de primeira e de segunda classe. Isso quer dizer que é forte o impacto material e psicológico sobre a massa de ex-trabalhadores formais rebaixados ao capitalismo de terceira classe.  

MAIS 2001 

Turismo de negócios, informática, biotecnologia, telecomunicações, consultoria financeira, jurídica e empresarial, além de química fina são alguns dos setores industriais e de serviços inexistentes ou pouco expressivos numa região estruturada pela Velha Economia, sobretudo dos setores metalúrgico e de mecânica pesada.   

MAIS 2001 

A inadequação do título do trabalho do professor João Batista Pamplona se espalha também para a definição desse numeroso exército de empreendedores e empregados do capitalismo de terceira classe. Ao conceituar esse universo de setor informal, Pamplona argumentou equivocadamente que o conjunto de unidades de produção pesquisado não se enquadra no critério capitalista. (...) Exatamente porque discordo da definição do autor da pesquisa, resolvi dar suporte a essa interpretação sob o título de Capitalismo de Terceira Classe. Afinal, por mais que o peso tributário do Estado brasileiro tenha colocado os empreendedores em nítida desvantagem na luta pela manutenção e formalização dos negócios, mesmo os negócios individuais dos chamados autônomos, não há sentido prático em aplicar qualquer outro rótulo que não de capitalistas.  

MAIS 2001  

Negócios de pequeno porte ou mesmo de autônomos que hoje estão na informalidade são essencialmente capitalistas. Seus proprietários, a despeito de lutarem pela própria subsistência e por mais que estejam administrativamente pouco preparados para a função, sabem distinguir perfeitamente lucro de prejuízo, preço de compra de preço de venda, receita de despesa e remuneração de mão-de-obra. Enfim, o capitalismo de terceira classe é um aleijão do capitalismo clássico, mas não deixa de ser capitalismo. Pelo menos até não ser completamente inviabilizado pelos tentáculos deformadores do Estado. 

MAIS 2001  

Prova o trabalho do pesquisador e coordenador da pesquisa da Agência de Desenvolvimento Econômico — marcaram o crescimento em termos de quantidade do pequeno negócio familiar no Grande ABC. Se no biênio 1988-1989 o segmento apresentava participação média de 23%, no período de 1998-1999 alcançou 32%. O aumento relativo de 39% significa que, antes da chegada da globalização sob o comando de Collor de Mello, o Grande ABC tinha praticamente apenas um quinto de sua economia dominada pelo capitalismo de terceira classe. Dez anos depois das turbulências que enxugaram drasticamente os quadros de trabalhadores nas fábricas da região pelo capitalismo de primeira e de segunda classe, a relação de pequenos negócios familiares e de autônomos no conjunto de ocupados passou para um terço. 

MAIS 2001  

 (...) A simetria entre os resultados do Grande ABC e da Grande São Paulo não surpreende porque a evasão industrial atingiu indiscriminadamente esse território ocupado por 39 municípios. Como o desenvolvimento econômico jamais se cristalizou como eixo estratégico de qualquer administrador público da RMSP, os efeitos só poderiam ser semelhantes. Se a criação da Região Metropolitana de São Paulo pelo governo militar, ao final dos anos 70, não se traduziu em resultados efetivamente positivos em áreas sociais mais próximas dos administradores públicos — casos de transporte, educação, saúde e meio ambiente –, o que se poderia esperar da sensibilização para a área econômica? Ou alguém consegue encontrar expressão mais apropriada para a RMSP do que um aglomerado humano e material absolutamente caótico? Pamplona não se referiu a esses aspectos. 

MAIS 2001 

 (...) A dura realidade é que ao estratificar o capitalismo que prevalece no Grande ABC em quatro categorias, têm-se uma divisão numérica preocupante. Afinal, do total de 1,193 milhão da População Economicamente Ativa em outubro último, 295 mil integravam o chamado capitalismo de terceira classe e outros 212 mil o capitalismo de quarta classe, de desempregados. Somando-se as duas últimas camadas, chega-se ao total de 42,5%. É gente demais não só fora do jogo do desenvolvimento econômico como também distante de perspectivas mais imediatas da reestruturação industrial e de organização do setor terciário de uma região que jamais foi capaz de se disciplinar economicamente. 



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